Durante praticamente toda minha fase adulta não tive a oportunidade de conviver no dia a dia com meus pais. Como morava numa cidade e estudava em outra e devido a dificuldades financeiras dos meus pais na minha adolescência, passava a semana na casa da minha avó e apenas nos finais de semana voltava para minha própria casa. Isso ocorreu entre meus 12 e 15 anos de idade, alternando em períodos maiores ou de menor duração.
Durante o segundo grau, ensino médio atual, pude conviver com mais proximidade com eles. Na verdade, com a minha mãe, pois meu pai viajava mais da metade do ano a trabalho. Adolescente na época, estava mais preocupado com meus próprios problemas do que em observar qualquer coisa.
Quando me formei no ensino médio e passei para a faculdade voltei a morar no RJ e novamente a ficar muito distante deles. A partir daí, posso dizer que não tive mais um contato próximo no dia a dia com eles. Mudei para o PR, casei-me, tive filhos, me separei, casei-me de volta. Mesmo eles estando agora também morando em Curitiba, a situação estava cômoda e não conseguia me aproximar sem que houvesse algum ruído.
Já no meu segundo casamento, morei fora do país, voltei para Curitiba e me mudei de cidade. Fui morar em SC, onde passei 7 anos e meio. No início do segundo semestre de 2018, minha esposa foi demitida do emprego e optamos que iríamos buscar alguma alternativa diferente, fora das condições que estávamos. Nesse momento surgiu a opção de irmos morar definitivamente fora do país, pedindo nossa nacionalidade portuguesa.
Tínhamos um plano montado: vender todas as nossas posses enquanto o processo corria em Portugal. Nesse período iríamos buscar o contato que nunca tive com meus pais, pois dessa vez optamos por morar na casa deles. O plano inicial era que essa estada durasse entre 6 meses e um ano no máximo. E mesmo assim, eles também queriam viajar, então o provável seria que nem durasse todo esse tempo.
Mas como nem tudo sai como planejado, tivemos vários contratempos: o processo de nacionalidade acabou demorando um pouco mais do que imaginamos e quando o do meu pai saiu, veio a pandemia, que ruiu totalmente nossos planos. Quando isso ocorreu já morávamos juntos a 8 meses e o isolamento social nos aproximou por demais. Nesse período pude notar vários comportamentos que nunca soube: seja pela distância física ou por comportamentos aparentemente irrelevantes. São esses comportamentos que passo a relatar agora.
Durante os primeiros 6 meses morando com eles, meu pai com 68 anos optou por se aposentar de fato. Ele, oficial de Marinha, já era da reserva desde o ano 2000, mas prestava serviços em Paranaguá, fazendo os 100Km entre o litoral e Curitiba diariamente. Sempre muito ativo e com muita vitalidade, a aposentadoria total para ele seria difícil. Isso não estava claro para ele, mas o cansaço de acordar muito cedo e a pressão da minha mãe, fez com que ele se rendesse e pedisse dispensa.
Na idade dele, foi praticamente impossível entender a nova realidade. Acordar tarde, nunca! Sempre se levantou antes das 6h e manteve essa rotina com caminhadas diárias ainda mais intensas e dessa vez puxando a companhia da minha mãe. Ela por sua vez nunca gostou de acordar cedo e sempre que ia, o fazia “se arrastando”. Mudaram o horário do pilates para as 7h da manhã para ter mais tempo! Foi nesse período que dois fatos nos chamavam atenção: a quantidade de copos que meu pai quebrava ao lavar louças e como minha mãe caia na rua. Esses dois pontos que passo a descrever.
Em casa, meu pai sempre foi pouco participativo e com a aposentadoria e ociosidade decorrente passou a incluir algumas atividades domésticas. Sob argumento de economia, eles dispensaram a faxineira e passaram a limpar a casa. Ele passou a lavar a louça depois que retiraram a lava-louças, pois a instalação não estava adequada. A limpeza da casa até que foi ok! Mas a louça foi complicada: era um copo quebrado por semana. Na época entendíamos que era casualidade ou que o sabão deixava liso demais os copos. Mas só com ele acontecia isso!
O caso da minha mãe parece ser um pouco mais interessante. Dois anos mais nova que meu pai e com dois AVC’s, sempre foi muito ativa. Sempre fizeram caminhadas intensas e longas e as quedas aconteciam. No entanto, essas quedas começaram a se tornar frequentes e com consequências a sua integridade física que nos chamavam a atenção. Ela caia antes, durante e depois do pilates, retornando para casa depois de uma caminhada matinal acompanhada do meu pai e mesmo em viajem de férias. Ela fez todo tipo de exame, descobrindo um problema durante o sono. Compraram um equipamento específico que lhe permitiu dormir melhor, mas não o suficiente para que as quedas fossem zeradas.
Olhando isoladamente, as duas situações dizem pouco, mas ao contextualizá-las no dia a dia dos meus pais, me parece claro que os dois estão se esforçando para realizar algo que de fato não desejavam. Seria um errar acertando, definição clara de ato falho de comportamento. Segundo Laplanche & Pontalis, “fala-se de atos falhos não para designar um conjunto das falhas de palavras, da memória e da ação, mas para as ações que o sujeito consegue realizar bem, e cujo fracasso ele atribui apenas a sua distração e ao acaso. Freud demonstrou que os atos falhos eram, assim como os sintomas, uma formação de compromisso entre uma intenção consciente do sujeito e o recalcado.” Para o meu pai, ocupar seu tempo parece muito válido, mas não lavando louças. Não que haja qualquer distinção entre as atividades de homem e mulher dentro de casa, mas a sua história de vida demonstra que ele sempre foi servido, tanto no âmbito profissional quanto em casa. Não é de fato uma atividade que o inconsciente dele aceite em realizar. Ele ainda utiliza de um mecanismo de defesa bastante interessante para se manter ocupado, justificando que não pode colocar uma máquina de lavar louças na cozinha, pois não tem dinheiro e não tem espaço na cozinha para tal. O mesmo serve para minha mãe: acordar cedo para ela é muito sacrificante e acompanhar meu pai se tornava uma obrigação. Nesse sentido, as pernas fraquejavam e ela cair hoje, não me surpreende em nada.
Para concluir, tanto meu pai quanto a minha mãe, ainda não aceitam qualquer alteração em suas rotinas, por mais que tenha demonstrado para eles que existe uma relação de compromisso entre algo inconsciente e suas “falhas”. Minha mãe ainda aceita um pouco mais, porém não abre mão de acompanhar meu pai nas suas atividades físicas matinais e meu pai… bem, ele continua acreditando que minha mãe precisa andar para ganhar força nas pernas e a puxa cada vez mais para essas atividades e, a meu ver, continua acreditando que não tem dinheiro para comprar e instalar uma lava-louças para eles. Mas os tombos continuam, assim como os copos continuam sendo quebrados. Não posso deixar de, por fim, citar minha avó que, sem nunca ter lido uma linha de Freud e fazer uma única sessão de psicanálise, dizia para meu pai: “Luiz Antônio tá cheio de preguiça para lavar louça, já quebrou outro copo”. Ela claramente conseguia perceber o compromisso entre a intenção consciente do meu pai de ajudar em casa, mantendo-se ocupado ao lavar a louça e seu inconsciente de que não era aquela atividade real que ele gostaria de realizar, mas sim, seu trabalho ativo que por anos ele exerceu.
0 Comentários