Sempre fui bastante ligado ao mundo dos esportes e durante meu tempo livre tenho por hábito acompanhar diferentes modalidades, inclusive buscando fazer analogias e metáforas entre o que acontece nas esferas esportivas com o nosso dia a dia. Durante os últimos Jogos Olímpicos, realizados no Japão no ano de 2021, um atleta brasileiro, em especial, terminou a sua competição em terceiro lugar ganhando a medalha de bronze. Um resultado por si só esplêndido, mas que repercutiu na mídia brasileira e nas redes sociais como um verdadeiro espetáculo, dado a superação e sofrimento que foi para que ele conseguisse se preparar para os Jogos, principalmente no período de isolamento provocado pela pandemia. Esse fato me fez, na época, pensar em como nós brasileiros vivemos romantizando o sofrimento no esporte e como sempre nos vemos, no cenário esportivo, ao menos, como “batalhadores” e que devemos “superar todas as adversidades para alcançarmos bons resultados”. São inúmeras histórias do menino pobre, sem esperanças que conquista o mundo através da superação esportiva.
Como disse, busco pensar que o ambiente esportivo apenas reflete um contexto maior social que estamos inseridos. A partir dessa premissa, passei a observar essa questão da superação e da batalha como algo que valorizamos. Até ai, ok! Sim, viver em busca de algo melhor, dos sonhos e tudo mais, faz parte da natureza humana e é a base da nossa evolução enquanto espécie. No entanto, passei a observar, em especial na cultura católica ocidental moderna (e em especial, a brasileira!) em como superdimensionamos o resultado positivo quanto ele é proveniente do sofrimento, da luta e da dificuldade. Expandindo esse pensamento, concluo que somente seremos felizes se primeiro formos tristes e sofridos, ou seja, buscamos o sofrimento como caminho para uma recompensa maior chamada felicidade e, essa felicidade só é válida e plena se for advinda de altos graus de sofrimento.
O maior exemplo disso pode ser visto na música popular brasileira atual. O sertanejo-pop retrata todas as relações amorosas como doídas, tóxicas… e que a felicidade ao final da história só é alcançada depois de um longo período de lutas e sofrimento. Fora do cenário brasileiro, alguns contextos também retratam esse padrão de vida: os filmes, basicamente os americanos são assim: sofrer-lutar-doer-sofrer mais-ser feliz. Ou seja, os conceitos de “happy end” e o “felizes para sempre” está diretamente relacionado a esse conceito do sofrer como o caminho (único) para a felicidade.
Outro exemplo dessa normalização do mal humor e sofrimento é o personagem “Garoto Enxaqueca”, personagem criado nos EUA e veiculado na MTV brasileira durante a década de 1990. Para os que tem menos de 30 anos, as historinhas retratam um menino mal-humorado que sofre de enxaqueca crônica, e a sua interação com a vizinhança que constantemente se aproxima tentando estabelecer com ele uma relação de amizade. Essas histórias possuem um senso de humor muitas vezes absurdo, com reações exageradas do Garoto Enxaqueca reagindo violentamente à irritação causada pelo seu vizinho. Além dele, e ainda mais antigo, os personagens da série de desenhos “Corrida Maluca” Dick Vigarista e seu cachorro Muttley da Hanna-Barbera, criados na década de 1960, além de mal-intencionado, o vilão do desenho tinha uma personalidade, ranzinza, “reclamona” e mal-humorada, tornando-o cômico e engraçado sob ponto de vista da criançada da época.
Na minha própria vida privada pude conviver com personagens que retratam esse cenário. Meu pai traz em si essa personalidade reclamona, mal-humorada, sofrida a ponto de com menos de 14 anos de idade, segundo seus amigos de infância seu apelido era “véio”, uma vez que no período de escola ele dormia em um beliche, na cama de cima e sempre, ao subir as escadas do beliche reclamava da situação. Esse traço “véio” o acompanhou durante toda a vida (ao menos a vida que pude acompanhar!) desde a adolescência, até a idade adulta e a terceira idade, sempre reclamando de algo, com uma leve tristeza no olhar, um certo ar de desesperança, mas com um discurso que “no fim, tudo dará certo”. Em certo momento, conforme retratei acima, os personagens e o apelido dele vieram à tona, transformando a figura “reclamona” do meu pai em algo divertido, icônico, comum e… normal! O curioso que após a sua aposentadoria, sua personalidade, segundo minha mãe, muda: ele passa a ter menos episódios de reclamação, mal humor, e passa a buscar mais prazer em diferentes situações.
Essa visão “normal” do meu pai, encarando suas lutas cotidianas como o caminho para a felicidade na aposentadoria tão retratadas nas músicas, cinemas e desenhos aminados, me remetem a pensar o quanto estivemos “normalizando” a depressão e, principalmente, sua versão mais “leve”, chamada tecnicamente de distimia. Aqui preciso fazer uma ressalva: não que meu pai fosse distímico ou depressivo, até porque pelo fato de normalizar esse comportamento, ele nunca se deu o trabalho de ir ao um médico. O olhar para o seu sofrimento e mal humor como algo caricata e patológico, encarando como um traço simples da sua personalidade faz (ou fez!) com que esse sofrer não fosse devidamente cuidado e tratado.
A palavra “distimia” tem sua origem na palavra grega que significa “mal humor”. Ela foi usada durante anos para retratar pessoas realmente mal-humoradas e irritadiças, daquelas que dizemos são pessoas “difíceis de conviver”. A distimia se difere de quadros depressivos na intensidade dos sintomas e na duração deles. Enquanto na depressão os sintomas como irritabilidade, angústia, ansiedade, desânimo e desinteresse em atividades diárias, além da diminuição da capacidade de sentir alegria e prazer no dia a dia são intensos e duram entre 6 meses e 2 anos, na distimia os mesmos sintomas são observados de forma mais branda e observáveis por no mínimo 2 anos, podendo se manter por toda a vida.
Assim como meu pai, é normal observarmos pessoas no nosso dia a dia que são mal-humoradas e irritadas com “tudo”. Novamente na minha família temos três diferentes gerações, meu tio, seu afilhado e sobrinho (meu irmão) e meu sobrinho, filho desse meu irmão que são exatamente assim. Chegamos ao ponto de os apelidarmos de “Maizenão”, “Maisena” e “Maiseninha”, pois os três engrossam rapidinho… Novamente, fazemos graça e encaramos como um traço da personalidade deles. Esse olhar “normal” ou algo que seja um traço desagradável da personalidade de alguém mascara o principal problema da distimia, apesar de poder ser vencida. Por não ser tratada de forma correta, os distímicos podem evoluir para outros transtornos como depressivo maior, transtorno bipolar (dos diferentes tipos) ou ansiedade.
Por fim, existe obviamente uma enorme diferença entre os que lutam e buscam incansavelmente seus objetivos. Essas pessoas não podem sequer ser consideradas como distímicas, uma vez que estão motivadas a conseguir seus objetivos. O que penso é que, a partir do momento que valorizamos o sofrimento, criamos uma crença de que somente seremos felizes ao final de uma estrada de muito sofrer. Com essa crença instalada, comportamentos distímicos podem se instalar e desenvolver transtornos silenciosos e, que ao sinal de qualquer tropeço nesse caminhar, algo maior pode se desenvolver, levando inclusive ao suicídio. Basta analisar quantos atletas medalhistas olímpicos existem? Quantos saíram vitoriosos dessa estrada e quantos ficaram pelo caminho?
Aqui entra exatamente o tratamento! Apesar de não parecer doente, a pessoa distímica precisa procurar um médico para ser diagnosticada corretamente. Pode ser necessário também tomar medicação antidepressiva. As medicações ajudam, mas o tratamento só funciona se o paciente fizer Psicoterapia. É na terapia que esta pessoa aprende a mudar sua forma de pensar e de ver o mundo. Ela substitui essas crenças pessimistas e negativas por uma forma mais leve de pensar a vida.
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