Sexo é bom, saudável e atualmente ninguém mais dúvida que a sua prática é de vital importância para uma vida sadia, independente do seu status social, ou seja, viver a sexualidade tem muito mais a ver com sentir prazer do que propriamente viver a dois. Contudo, como tudo em excesso, o comportamento caracterizado por fantasias, anseios e comportamentos sexuais recorrentes e intensos e que causem sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo social ou ocupacional em qualquer área da vida do indivíduo deve ser tratada. Essa é a definição das parafilias. Em suma, o parafílico não consegue sentir prazer sem o contexto da sua fantasia ou fetiche e tem outras áreas da sua vida prejudicadas pelo exercício da atividade sexual.
Vale lembrar aqui que os comportamentos e fantasias sexuais são comuns e mais, o bom sexo depende que o indivíduo expresse e vivencie plenamente as suas. Essas fantasias, no entanto, somente são consideradas um problema se o indivíduo, ou mesmo o casal, sentir que a atividade é um problema. Outro fato digno de ser citado é o sofrimento que possa causar a si ou a terceiros, seja no aspecto físico ou moral. Sob essa ótica, um casal adepto por exemplo de práticas exibicionistas que procura ambientes em que a exposição do corpo ou mesmo onde o ato sexo em público é permito não deve ser considerado como parafílico. No entanto, um indivíduo que coloca uma câmera para gravar a intimidade alheia, sem qualquer consentimento, sim!
Uma das práticas mais difundidas atualmente é que deve ser olhada como uma forma de atividade sexual saudável é o BDSM. O BDSM é uma forma de relacionamento adulto entre dois ou mais parceiros e seu acrônico é definido da seguinte forma: B (Bondage e Disciplina); D (Dominação e Submissão); S (Sadismo) e M (Masoquismo). Freud teorizou que a origem das personalidades sádicas e masoquistas estão atreladas ao desenvolvimento psicossexual da criança e suas experiências, principalmente na fase anal. Esse artigo não pretende compreender essas origens e como essas personalidades se moldam. Tenho o interesse somente em descrevê-la tal qual uma prática sexual saudável.
Justamente por ter origem no desenvolvimento psicossexual da criança, todos nós a experimentamos em maior ou menor grau e, apesar de ser considerado uma prática fetichista, por incrível que pareça, a maioria das pessoas em algum momento durante suas relações sexuais já fantasiou com o sadomasoquismo, sendo considerado uma fantasia extremamente comum. Um estudo efetuado por Justin Lehmiller da Universidade Ball State, sobre as fantasias mais comuns revela que algumas mulheres preferem o masoquismo, ou seja, conceder a dor ao parceiro. Entretanto, a maioria prefere receber dor ao invés de causá-la. Nessa fantasia os parceiros vão além dos tapas e mordidas. A ideia é derramar cera quente no parceiro, amordaçar, algemar. Ou seja, fazer o que mais agradar ambos. No entanto, o ponto principal é que ambos devem se sentir confortáveis e com prazer. O sucesso da trilogia “50 Tons de Cinza”, seja os livros ou os filmes revela o quanto essa fantasia de alguma forma permeia o imaginário popular atual.
Mais uma prova: quase 47% das mulheres e 60% dos homens fantasiam sobre dominar alguém sexualmente, enquanto um pouco mais de mulheres e menos homens são despertados pela ideia de serem dominados, de acordo com um estudo publicado online em 3 de março de 2016 no The Journal. O mesmo estudo também descobriu que quase 47% dos adultos gostariam de participar de pelo menos um tipo não tradicional de atividade sexual e 33,9% disseram que já haviam feito isso pelo menos uma vez no último ano. No Google, o termo “BDSM” retorna mais de 500 milhões de resultados. Ainda como dados de quanto as práticas sadomasoquistas estão presentes e são vivenciadas nos relacionamentos, podemos citar que desde a Grécia e Roma antigas, a dor física era usada como estímulo erótico, além de capítulos no Kama Sutra, entre outras histórias.
Bem… em algum momento, vários de nós já reprimiu algum desejo inconsciente de práticas sexuais que envolvam dor e/ou submissão/dominação em função de desconhecimento e preconceitos. Segundo o DSM-5 da Associação Americana de Psiquiatria, existe uma clara distinção entre os adultos que se envolvem em práticas sexuais com consentimento e comportamentos fora do “padrão”, tais como o BDSM e demais indivíduos que forçam outros a se envolverem em tais práticas. Ainda segundo esse material, simplesmente experimentar tais práticas portanto, não é sinal de qualquer transtorno mental, tão pouco de parafilia, como a descrevemos acima, não justificando qualquer intervenção clínica. Lembrando que tal prática não deve causar qualquer tipo de desconforto para o praticante e todos que estejam envolvidos.
Para ficar claro o que está envolvido em “sofrimento” é importantíssimo ter claro o real e completo significado do termo BDSM. Como já disse acima, o referido termo é um acrônico, a saber de:
Bondage: É praticado por indivíduos que gostam de ser amarrados, presos. Existem diferentes maneiras de praticar o bondage, entre elas o Shibari meditativo que é uma delas e não tem nada a ver com sexo ou violência. Na verdade, segundo praticantes o objetivo é combinar a espiritualidade com a sexualidade.
Dominação e Submissão: Aqui talvez esteja reunido nosso imaginário das práticas BDSM. Aqui o prazer está em dominar ou ser dominado. É o jogo em que um se submete aos desejos do outro com regras claras dentro de uma consensualidade negociada.
Sadismo e Masoquismos: Outro ponto cujo imaginário popular está repleto de ideias e onde Freud desenvolveu boa parte das suas teorias. É uma forma de comportamento entre dois ou mais parceiros adultos com uso de estimulação física e/ou psicológica com o objetivo de produzir excitação e satisfação sexual. As práticas vão desde o “Spaking”, um tipo de castigo corporal utilizando chicotes por exemplo, até uso de velas, ceras quentes, sangue, sufocamento etc.
Embora correntes e chicotes possam excitar, é errado pensar que todas as manifestações do BDSM envolvem dor extrema. A variedade de expressões eróticas que se encaixam sob seu guar da chuva é enorme. Em uma extremidade, há BDSM “leve”, que inclui atividades como fazer cócegas e usar uma venda nos olhos. Do outro lado, está o modo “hardcore” caracterizado pelo uso de chicotes e ceras, além de humilhação. Pedir para usar prendedores de roupa na sua língua ou ser mumificado com plástico filme e ficar completamente imóvel são opções da linha mais “hardcore”. Viver como submisso, usando coleira de couro enquanto serve um parceiro dominante também. Existem diferentes formas de escolher vivenciar o BDSM e a palavra-chave da prática é “escolher”.
Como já colocado em diferentes momentos desse texto, o que difere as práticas BDSM de uma atividade saudável e prazerosa de um distúrbio sexual digno de intervenção clínica é muito tênue. O que separa o BDSM da violência são três pilares básicos, conhecidos como SSC: (S) a relação deve ser sadia, não colocando em risco a saúde física e mental de todos os envolvidos; (S) a segurança deve estar em primeiro lugar, ou seja, todos os cuidados devem ser tomados para que não ocorram acidentes graves; e (C) deve existir um acordo prévio entre as partes envolvidas, caracterizando a prática como consensual, delimitando assim o que pode ser e o que não pode ser feito, inclusive o como pode e por quem pode ser realizado.
O principal ponto para que essa prática seja realmente vivenciada de forma plena, segundo seus praticantes, é o psicológico. Portanto, para o jogo seja uma experiência positiva, e o BDSM seja real, é necessário envolver uma troca de poder com muita confiança e respeito. Os envolvidos precisam decidir qual papel desejam desempenhar. É essa dinâmica que cria a intensidade erótica. É exatamente essa dinâmica consensual, segura e prazerosa que não caracteriza as práticas BDSM como parafilia, sendo um fetiche em que os casais podem vivenciar seus impulsos libidinais.
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