Sempre me interessei pelas relações humanas e a forma que as desenvolvemos. Mesmo antes de começar a estudar e trabalhar com desenvolvimento humano e cursar psicanálise em si, já buscava entender determinados comportamentos que as pessoas em minha volta tinham e que eu julgava “estranho”.
Nesse sentido, me chamava a atenção como somos capazes de “distorcer” a realidade para encontrarmos formas mais convenientes de lidarmos com a “nossa verdade”. Essa era a linguagem que na época traduzia o que eu enxergava do comportamento dessas pessoas próximas. O mais curioso é que somente notava isso nos outros, mas não em mim mesmo! Com o passar dos anos e, obviamente, depois de começar os estudos de psicanálise, percebi que sim, nós (incluindo-me agora nessa reflexão) somos capazes e extremamente hábeis em “criar novas realidades” para evitarmos confrontos com sentimentos que consideramos angustiantes e aflitivos. São, o que Freud teorizou como mecanismos de defesa do ego.
Conceitualmente, diversos autores definem esses mecanismos como qualquer ação inconsciente do ego que venha a reduzir, modificar, transformar, ou eliminar qualquer pulsão do id ou as exigências do superego que sejam capazes de trazer riscos ao indivíduo. Com isso, o ego lança mão de recursos disponíveis, tais como o controle de percepção, pensamento, a alteração de comportamento, entre outros.
Podemos então afirmar que os mecanismos de defesa são uma espécie de proteção da psique humana e tem como grande finalidade preservar o seu equilíbrio. Para tanto, o ego interfere no modo inconsciente no sistema percepção-consciência, preservando seus modos normais de funcionamento, mas alterando dados e fatos, fazendo-os serem recebidos pelo consciente não como realmente são, mas sim de forma distorcida e convenientes aos interesses do ego, mesmo que esses sejam de fato irreais.
Desde a mais tenra infância, os mecanismos de defesa são utilizados no dia a dia das pessoas, sendo inclusive muito úteis no nosso desenvolvimento, fazendo com que o nosso ego se adapte ao meio em que estamos inseridos. Um exemplo disso é como adquirimos a linguagem através do mecanismo de defesa chamado identificação. Por outro lado, os mecanismos de defesa, como já citado, são muito utilizados quando há uma desadaptação do ego. Nesse caso, os mecanismos de defesa podem levar a sintomas patológicos e ansiedade.
Esse artigo não pretende listar quais são os principais mecanismos de defesa, tão pouco demonstrar como cada um deles é utilizado no nosso cotidiano, assim como quais são os frequentemente utilizados em personalidades neuróticas, psicóticas e perversas. Pretendo ilustrar que, desde nossos primeiros anos de vida, em todo o nosso processo de desenvolvimento, os mecanismos de defesa estão presentes e, por vezes são úteis para garantir nosso equilíbrio psíquico. Para tanto, trago uma situação prática que me recordo onde tento apresentar alguns dos mecanismos utilizados.
Certa vez, me recordo fortemente da minha irmã, Fernanda, 9 anos mais nova, estar brincando com uma amiguinha no quintal de casa. Elas deviam ter algo entre 4-5 anos de idade, não me recordo ao certo, e brincavam de escolinha ou algo do tipo quando nossa cadela resolveu aparecer.
A Gaia, nome da nossa cadela, entrou no meio da brincadeira das meninas e tirou do lugar todos os brinquedos. Por fim, ela resolveu se acomodar no colo de Juliana, a amiguinha da minha irmã. Surpresa e encantada, Juliana deitou sua própria cabeça sobre o corpo da cachorra e parou de brincar para aproveitar o momento.
Recordo-me claramente da reação da minha irmã: aos prantos, ela entrou gritando pela casa: “Não! Não! A Gaia não está fazendo isso. Ela não pode fazer isso comigo. Ela só pode gostar de mim, de mim!”. Eu adolescente na época, não dei muita bola para a reação da minha irmã e ainda “tirei um sarro”, dizendo para ela que a Juliana iria levar a Gaia embora.
Nesse momento, a reação da Fernanda ainda piorou: ela não conseguia admitir tamanha traição da Gaia, que resolvera acomodar-se logo no colo da amiga, e não no seu. Fernanda também não conseguia admitir a traição de Juliana que em vez de desprezar “aquele cachorro” (palavras dela e com bastante raiva), interrompera a brincadeira para dar atenção ao pet! Para terminar a cena, não aguentando a situação e minha zoação, a Fernanda começou a se espernear, socando as pernas, sacudindo a cabeça e batendo os pés fortemente contra o chão, fazendo aquela cena típica de criança birrenta e mimada. Depois de alguns segundos, que para mim foram uma eternidade e, principalmente, depois que a nossa mãe chegou para tentar controlar os ânimos, Fernanda se pôs somente a chorar copiosamente.
Hoje, um pouco mais maduro e já com alguns módulos de psicanálise concluídos, posso tirar algumas conclusões desse episódio. Do ponto de vista da Fernanda, o que aconteceu foi uma enorme traição: a cachorra que era sua maior parceira no dia a dia da casa, nunca poderia ter optado por deitar-se no colo da sua amiga Juliana. E, para piorar, concluiu que se Gaia fez essa escolha é porque ela gosta de qualquer um, quebrando uma realidade que ela havia criado: que a Gaia tinha um afeto exclusivo para com ela, Fernanda.
Como essa realidade lhe trouxe sentimentos dolorosos, Fernanda ficou ansiosa e angustiada. Diante dessa ansiedade, ela usou o mecanismo de defesa de negação para compreender a realidade de maneira alternativa: “Ele não está fazendo isso comigo”. Na sequência, Fernanda passou a espernear e depois chorou muito. O ato de fazer birra, esperneando e batendo as mãos contra as pernas pode ser interpretado à luz do mecanismo de defesa “voltar contra si mesmo”. A frustação que minha irmã sentiu por causa da traição de Gaia despertou nela pulsões agressivas que seriam inicialmente dirigidas tanto a cachorra quanto a sua amiga, Juliana. Por amá-las e por não querer machucá-las de fato, voltou a pulsão contra si mesma, se agredindo. Enquanto se agredia, essa pulsão foi aliviada, restando-lhe apenas a tristeza e o choro.
Concluo assim que, como no exemplo acima, buscamos sempre manter o equilíbrio do nosso sistema psíquico, lançando mão dos recursos que temos à disposição para alterar, distorcer ou eliminar aquilo que o ego não saiba trabalhar. Seja por conta das intensas pulsões vindas do id seja por conta das repressões do superego, o ego fará o que estiver ao seu alcance para manter esse equilíbrio.
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